O restaurador de Gurgeis

 O restaurador de Gurgeis

Carajás, X-12 e BR-800

Se na revista Balconista S/A temos a seção Placa Preta, que exalta a manutenção (ou recuperação) da originalidade de veículos antigos, aproveitamos a Reparador S/A para percorrer outro trajeto: o da modificação dos carros.

A estrada da paixão pelas quatro rodas apresenta algumas bifurcações, mas não importa qual saída o motorista irá pegar; afinal, paixão não se discute. Enquanto uns consideram o modelo de fábrica algo sagrado, outros querem torná-lo exclusivo em todos os sentidos. Seja o que for, há espaço para tudo.

“Sempre gostei de carro modificado, para que não exista nenhum outro igual”, afirma Rafael Gragnani, 30 anos, proprietário de três automóveis da Gurgel: um Carajás, um X-12 e um BR-800, todos restaurados por suas mãos. O entrevistado, percebe-se, preza pela originalidade, só que de um jeito diferente.

Rafael e o pai são marceneiros, e trabalham em um espaço nos fundos da garagem da própria casa, no bairro do Brooklin, em São Paulo (SP). A prática no universo dos reparos vem desde criança, ainda que, no planeta automotivo, a atividade seja essencialmente um hobby iniciado aos 17 anos.

“É pela paixão. No mais, preciso pagar minhas contas, e o dinheiro que entra é da marcenaria, inclusive para arcar com os consertos dos carros”, pontua.

Todos os veículos são restaurados na garagem, como você pode ver na página do Garagem.12, no Instagram. Mas, por ser aberto, o local não é exatamente o ideal para esse ofício, segundo o próprio Rafael admite. Assim, o cuidado precisa ser muito maior.

“É complicado porque o sol estraga a fibra. Ela começa a trincar, ressecar, deformar algumas partes. Carro de fibra deveria ficar no coberto. Tem um pessoal que fala que carro de fibra não apodrece, mas é mentira”, argumenta.

Leia também: Do banco à oficina.

Carajás

O Carajás de Rafael é o último deste modelo montado pela Gurgel, em 1991. O protótipo do dono da marca, Amaral Gurgel, passou nove anos abandonado na fábrica até ser arrematado em um leilão.

Inicialmente, a ideia da Gurgel era construir o veículo com mecânica de Opala – motor, câmbio e diferencial – mas a General Motors (GM) não autorizou na época, com exceção do diferencial. Diante disso, o carro recebeu motor AP e câmbio do Gurgel Supermini.

Em 2005, o pai de Rafael comprou esse Carajás, repassando ao filho cinco anos depois em troca de uma Ford Pampa. A partir daí, vieram as alterações, começando pela substituição do câmbio por um de Opala 5 marchas, peça que sofreu novas modificações.

“A manopla do câmbio é de peroba e 10 mãos de verniz PU; no volante, apliquei madeira de ipê maciça, com a mesma quantidade de verniz. Já na parte interna, troquei o banco da frente por um do Honda Civic 2008 – o de trás é original, mas mandei colocar couro”, enumera.

As mudanças também incluem rodas da Ford Ranger 2008, vidro elétrico, trava elétrica e alarme, e mais transformações se anunciam, conforme planeja o dono:

“Futuramente, quero colocar rodas cromadas Mangels, da década de 1990, injeção eletrônica FuelTech, e talvez um turbo para ficar mais forte e econômico”, finaliza Rafael, que pretende fazer do Carajás o seu carro de viagens, sobretudo pelo amplo espaço interno.

X-12

Os outros Gurgeis da casa podem até demonstrar ciúme, não querer arrancar na partida, ou beber combustível demais para afogar as mágoas, mas Rafael tem um filho preferido. “É o X-12, não tenho por que esconder. Ele é simplesmente diferente”.

Após comprá-lo em 2014, o marceneiro restaurou o modelo no ano seguinte durante 10 meses em sua garagem. Do original fabricado em 1980 restam pouquíssimos itens, com destaque para os bancos traseiros, o retrovisor interno e o motor a ar 1600 Volkswagen, este último desmontado inteiramente para renovar a pintura da lata.

O chassi e toda a parte de fibra, que estavam podres, foram refeitos, enquanto o lado de cima das portas ganhou reforço de madeira de ipê – uma das portas conta também com a companhia de uma pá que pertencia ao Exército Brasileiro. A capota, originalmente preta, agora exibe a cor beje. As rodas, por sua vez, receberam pneus da Ford Eco Sport e calota central de lata do Fusca.

Dentro da cabine, a exemplo do Carajás, o X-12 carrega um volante de ipê e uma manopla artesanal de peroba, além de um carpete de alumínio para “imitar um chão de ônibus”, de acordo com Rafael. Já o retrovisor foi deslocado para baixo, ganhando uma base.

Porém, o que mais chama atenção nesse X-12 é a traseira, onde logo se nota o filtro de ar do motor preso ao lado externo. Embora original, Rafael tratou de mudá-lo de lugar “para deixar mais rústico”, explica.

Outra alteração foi nas lanternas. As atuais são da Ford Troller F4 1000, o que forçou outra modificação, desta vez no tanque Gurgel. Antes, a peça comportava 20 litros; mas, para se adaptar às lanternas, precisou ser trocada por uma de 10L, pois a original ficava metade para dentro.

O X-12 é essencialmente o seu veículo do cotidiano e de viagens. Até pouco tempo atrás, também participava de trilhas – inclusive, ao lado de José Antonio e seu BR-800, cuja história contamos na revista Balconista S/A -, mas por causa de “perrengues com chuva e barro, nunca mais”. Uma típica proteção ao filho preferido.

Quando questionado se as tantas mudanças descaracterizam o automóvel, Rafael responde:

Modificar não é estragar. Por exemplo, as lanternas da Troller combinam com esse Gurgel, caíram muito bem na traseira, assim como todos os outros itens. Mas jamais colocaria alguma peça que tirasse a harmonia dos componentes.”

BR-800: a exceção

Diferentemente do Carajás e do X-12, Rafael busca fazer jus ao status do BR-800, o primeiro carro 100% nacional. Aqui, a meta é preservar ao menos 80% da originalidade deste modelo 1990 para também colocar nele a placa preta de colecionador.

Adquirido em 2017, o BR-800 era o automóvel usado por Rafael no dia a dia até ano passado, quando uma falha no virabrequim o forçou a consertar o motor. “Daí eu pensei: se vou ter que mexer no motor, vou restaurar o carro todo”, recorda.

Isso poderia ser uma deixa para os fantasmas da reparação assombrarem o marceneiro, que reconhece:

Não vou negar que quando estourou o virabrequim eu quase coloquei um motor AP! Mas abri uma exceção por conta do selo 100% nacional e porque eu tinha uma peça reserva.”

Nesse caso, a restauração é pontual, visando apenas ao cuidado do clássico veículo, que, nas mãos de Rafael, passou por um processo de raspagem e aplicação de fibra, e agora entrou em fase de acabamento com gel coat e primer PU, prevista para terminar no mês de julho.

Marcenaria de Rafael
A marcenaria de Rafael, nos fundos de sua garagem.

Há também outras duas alterações forçadas. O reservatório de água, originalmente o mesmo que servia ao Volkswagen Passat, enfrentava problemas de circulação do líquido no motor, e será substituído pelo equivalente do Ford Ka. Por fim, os retrovisores. Rafael colocará exemplares de Fusca, porque, segundo ele, os originais são extremamente difíceis de encontrar, e quando se acha, estão muito caros.

Mas estávamos falando das mudanças obrigatórias – ou quase isso. Agora vamos mencionar aquela que veio por livre e espontânea vontade: a cor.

“A cor original era branca, mas como eu não gosto de branco, vou mudar pra amarelo”, relata Rafael, que mesclará a nova cor com os cinzas preexistentes, processo este já em andamento. Assim, o amarelo irá colorir traseira, capota, capô e a parte inferior das laterais, enquanto o cinza preencherá o para-choque e a moldura dos vidros laterais.

Com essa nova configuração, o BR-800 definitivamente deixará de ser o carro do cotidiano, garantindo de vez o posto ao filho preferido, X-12.

“Vou preservá-lo mais, porque a cor amarela é um pouco chamativa; não dá para deixar parado em qualquer lugar.”

Apesar das ameaças de desvio de rota, Rafael conseguiu ser fiel pelo menos aos 80% da originalidade. Coisas que só um BR-800 parece fazer.

Esta reportagem também encontra-se disponível na Revista Reparador S/A – Edição 01. Leia o material completo!

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