Hobby Reparador: Terapia com um Frankenstein

 Hobby Reparador: Terapia com um Frankenstein

Uma Willys 1941 em constante transformação.

Vivemos tempos que nos alertam a valorizar um de nossos bens mais preciosos: a saúde mental. Hoje, definitivamente, preservar a vida passa por cuidar da cabeça; falar em saúde mental implica em destacar a importância da terapia, especialmente com acompanhamento psicológico profissional.

Mas algumas pessoas encontram alternativas além dos tratamentos convencionais. Jaelson Santos, de 53 anos, é uma delas. Trabalha como supervisor de operações de caminhão betoneira, e, nas horas vagas, viaja através do seu tipo particular de terapia: montar carros hot rod.

O ‘consultório’ é a garagem da própria casa, localizada no bairro Vila Natal, zona sul de São Paulo (SP). Seu cliente não fala, mas se comunica; emite sons, sinaliza quando as coisas vão bem e reclama caso precise de reparos.

É uma garagem apertadíssima, aparentemente feita sob encomenda. O portão chega a sussurrar na parte de cima do automóvel enquanto fecha. Porém, tudo fica mais fácil quando o cliente é seu. Essa é a vantagem de ser ao mesmo tempo terapeuta e dono: conhecer de verdade a máquina – cada peça, cada ruído, todas as virtudes e defeitos.

Atualmente, trata-se de uma réplica da caminhonete Willys 1941, com uma série de adaptações, como você verá mais à frente. Nas mãos de Santos desde 2012, este é o terceiro hot rod construído por ele. O primeiro foi um Ford T-Bucket, em 2008; dois anos depois, outro Ford, desta vez um Tudor. Ambos já foram vendidos.

“O serviço do dia a dia é cansativo. O chefe tem as metas dele e eu tenho as minhas. Cada um acaba encontrando sua terapia, e a minha é essa. Quando eu chego em casa, preciso apertar um parafuso”, relata Santos.

Todo hot rod é um Frankenstein

A paixão de Santos pelos carros antigos – especialmente os hot rods – começou por volta dos 15 anos, época em que assistiu ao filme Em Busca da Vitória (1979), de George Harmitage, cujo enredo mostra a história de um jovem que atravessa os Estados Unidos à procura de corridas de arrancada.

“Quando eu vejo uma carroceria não montada, já imagino o carro pronto no futuro. Um carro hot rod sempre é um Frankenstein. Você vai pegando peças diferentes em lugares diferentes e montando. A carroceria, por exemplo, eu consegui lá em Bom Jesus dos Perdões”, conta.

Apoiada sobre um chassi com tubo 4×8 e parede 3mm, a carroceria foi arquitetada de acordo com a apertada garagem, recebendo a cor marrom metálico – ou imperial – e verniz fosco.

Ela tem como base a já mencionada cabine réplica da caminhonete, que ganhou a companhia de uma traseira montada no estilo cupê. A tampa, por sua vez, é parte de um Jipe Willys pós-2ª guerra, de 1943.

O Chevrolet Opala é outro veículo presente no Frankenstein de Santos, oferecendo o motor 6 cilindros, a suspensão dianteira, eixo traseiro e o câmbio de 3 marchas, posicionado junto ao volante – este último retirado de um Ford 1937.

Outros componentes importantes são o farol do Fusca 1972, as lanternas traseiras do Jipe e as rodas de liga leve Mangels, nas quais Santos incluiu pinos de caminhão, estilizando ainda mais os conjuntos inscritos nos pneus Yokohama 265.

Também são dignos de nota os vidros de box de banheiro que compõem as janelas, além de uma peça no capô, original de uma bicicleta Monark. Isso sem citar um detalhe fundamental em relação ao painel do para-choque, vindo de um Fiat Palio, pois “é o único que consegui encaixar para eu caber no carro”, explica Santos.

Santos e Índio: inseparáveis

Índio, o apoiador das loucuras

Fazer terapia não significa acabar com as loucuras*, mas, sim, encontrar meios para conviver com elas e, dependendo do caso, alimentá-las.

Uma pessoa pode ter ideias mirabolantes, faltando a ela apenas um braço direito para colocá-las em prática; afinal, “ninguém faz nada sozinho”, reconhece Santos.

Assim, é quase loucura pensar que esse hot rod pudesse existir sem a ajuda de Claudio Wellington: o Índio, seu fiel escudeiro, “apoiador das loucuras”, como ele mesmo se intitula.

Para a dupla, diante do orçamento curto, a ordem é fazer tudo o que dá com tudo que tem, sem meio-termo. Desse modo, Índio lista as duas opções possíveis:

“Se a gente não tem uma peça, precisa ou criar uma ferramenta para produzir, ou pegar outra peça e modificar para ela virar o que a gente necessita. Nossa realidade é essa. Algumas pessoas fazem projetos de carros mirabolantes, mas porque têm uma carteira diferenciada.”

Santos completa o raciocínio do amigo:

A gente não tem uma mesa de plasma pra desenhar a peça. A gente vai na esmerilhadeira. Se for chapa fina, é na serra tico-tico.”

O dono da Willys adaptada também recorda outro episódio que retrata os detalhes de montagem e reparação. Como podemos mais uma vez confirmar, é sempre assim, no fio da navalha.

“Inicialmente, a suspensão dianteira não tinha cabido na carroceria. O pneu pegava nela. Então, tivemos que tirar, cortar 2,5 cm e deixar cada lado com 1 grau negativo, para depois soldar e colocar novamente. Se ficasse positivo, o pneu ficaria para dentro.”

Próximo passo: furgão

Quando comprou a atual carroceria, Santos prometera que este seria seu último hot rod. “No anterior ele falou a mesma coisa!”, atravessa Índio.

Vale a brincadeira, mas fato é que não houve montagem depois da Willys, somente (várias) modificações. E elas vão continuar. Em breve, o veículo deverá não apenas ganhar uma nova suspensão traseira, como também mudar de formato, tornando-se um furgão.

Desde já, Santos vem se preparando financeiramente para os trâmites envolvendo vistoria, avaliação no Inmetro etc. O parceiro avalia – e defende – os próximos movimentos:

Customização é um caminho sem volta. Para nós que fazemos, nunca tem fim, sempre dá para melhorar. E a gente gosta de coisas paralelas, diferentes do que o povo tem. Se vamos a um encontro de carros, por exemplo, lá vão ter 15, 20 Fuscas. Nós queremos chegar sempre mostrando o oposto”, argumenta Índio.

Sempre alinhado ao fiel escudeiro, Santos finaliza retomando a terapia e a razão para seguir praticando:

“Eu preciso fazer isso para quando chegar o fim de semana eu poder rodar e mostrar. O ser humano é isso, ele gosta de mostrar o que tem e o que é.”

* O termo “loucura” não foi aplicado de forma literal, mas, sim, compondo um jogo de palavras a partir da fala do entrevistado.

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