E agora, José? – Como as oficinas têm sobrevivido à quarentena
Com uma pandemia rolando solta, estados e municípios pelo Brasil inteiro têm tentado manter a sua população dentro de casa, em quarentena. A situação, afinal, é bastante grave: essa é uma doença que se espalha com uma facilidade tremenda (transmissão respiratória combinada com transmissão oral-fecal), e leva a uma quantidade 65 vezes maior de hospitalização do que a própria gripe (segundo entrevista do virologista Paolo Zanotto à Saúde Abril).
O grau de perigo levou ao fechamento compulsório de inúmeros comércios. Na maioria dos estados, no entanto, o conserto de automóveis não teve o mesmo destino: ele é considerado um serviço “essencial”, e, portanto, tem permissão para ficar aberto. É assim no Maranhão, no Acre, no Rio de Janeiro – embora haja restrições específicas em cada estado, como o agendamento prévio ou uma distância de 1,5 metro entre clientes e mecânicos.
Em São Paulo também. O Decreto nº 64.881, de 22 de março de 2020 não permitiu o funcionamento de lojas de autopeças paulistas, mas as oficinas mecânicas podem abrir. Por causa disso, várias têm funcionando em seus horários habituais, quase como se não houvesse quarentena. Mas os problemas são sentidos de outra forma: o movimento diminuiu drasticamente. Sem clientes, não há estabilidade nos negócios.
Muitos já foram prejudicados, tendo inclusive que fechar a própria oficina definitivamente, e outros quebram a cabeça tentando entender como vão fazer para segurar as pontas até o fim da quarentena.
Nessa matéria, vamos ouvir os relatos de 4 proprietários e mecânicos de oficinas, entendendo pelo que estão passando e como têm tentado contornar a situação.
Como as oficinas têm funcionado?
É claro que isso varia muito de caso a caso. Mas, nos quatro a serem apresentados aqui, os trabalhos quase não mudaram de horário.
Fábio Alves Pereira fundou sua própria oficina em 1994. Ela recebe o nome de Binho Auto Elétrico e fica localizada em São Bernardo do Campo, em São Paulo. Fábio trabalha nela como reparador, mas também na parte administrativa e operacional. A oficina de mais de 25 anos tem um portfólio bem grande, trabalhando com mecânica geral, elétrica, injeção eletrônica, câmbio automático, suspensão e geometria.
Uma oficina de tantos anos de idade e tantos serviços já possui muitos clientes fidelizados, e Fábio conta que costuma atender cerca de 150 carros por mês. Na quarentena, no entanto, sente que quase 50% do movimento caiu. Mesmo assim, ele sente que não pode parar: “Desde o primeiro dia, nós estamos seguindo e trabalhando normalmente. Mudamos apenas a nossa estratégia e ferramentas, mas o horário é o mesmo”.
Já Joelma Rodrigues é proprietária da Divas Car Centro Automotivo, localizada em Guarulhos (SP). Sua oficina mecânica começou a ser idealizada em 2015, quando Joelma ainda trabalhava em bancos, mas foi apenas há 2 anos atrás que o seu projeto sonhado tomou forma de verdade. Abriu uma oficina depois de ter feito vários cursos para se especializar, e afirma que sua oficina possui um conceito único: de receber mulheres com o máximo de conforto possível. Fez o design pensando nisso e foi até mesmo premiada por um vereador de sua cidade pela sua ideia concretizada.
A Divas Car tem se mantido de pé, mas por algum momento chegou até mesmo a fechar. “A quarentena pegou todo mundo de surpresa. Porque, de uma semana para a outra, ninguém podia trabalhar. Eu fiquei uma semana fechada aqui, e só depois de ser considerada serviço essencial é que consegui abrir de novo”, conta Joelma.
Desde esses primeiros dias (1º e 2º de abril), ela sentiu o movimento despencar de 60 a 70%. “As pessoas estão em casa, e as pessoas que estão em casa acham que não precisam arrumar o carro, porque o carro está parado. O que também é um engano, porque carro parado também quebra”.
Jéssica Ribeiro Cardoso, como os outros dois, também sentiu o movimento cair muito. Também é sócia de sua oficina mecânica, a VTR Serviços Automotivos, ao lado de seu marido. O centro não foi criado por eles: os dois o assumiram em 2015, mas ele já existia em 2012. A oficina também faz de tudo, estando também localizada em Guarulhos.
“O movimento caiu muito. No começo a gente ficou com muito medo, mas agora não adianta ficar com esse sentimento: é preciso encarar”, afirma ela. Jéssica estima em 50% a redução. Seu horário de atendimento continua o mesmo: das 8h às 18h, e a VTR até mesmo aumentou o serviço, passando a atender também de sábado.
Fábio, Joelma e Jéssica têm uma mesma impressão: de que as pessoas talvez até teriam dinheiro para gastar com o próprio carro, mas estão preferindo guardá-lo. Afinal, o futuro é muito incerto e todos estão receosos. “Ainda não dá para falar muita coisa, mas dá para ver que as pessoas ainda estão segurando muito, e vão segurar muito ainda. Só vão fazer mesmo aquilo que é extremamente necessário”, diz Jéssica.
E Fábio complementa: “Não é só a oficina, como qualquer comércio está sofrendo. Estamos entendendo que as pessoas estão com medo… Vemos que o cara está segurando o dinheiro porque não sabe o que vai acontecer no mercado”, afirma ele.
Joelma, por sua vez: ‘Quem tem que arrumar o carro, ou quer arrumar, está com receio de arrumar, porque não sabe se vai ter emprego quando acabar a pandemia. Também estão com salários reduzidos. Então as pessoas estão deixando para depois”.
Fabrício Cavalcanti é mecânico, mas cuida da parte administrativa da Castrol Auto Service, localizada em Carapicuíba (SP). Já faz 15 anos que tem a oficina, tendo feito vários contatos com empresas com o tempo. “Quando montei a oficina aqui, sempre procurei ter um diferencial, seja com parceria ou com nomes”, explica. Acabou conhecendo o escritório da Castrol Brasil, um modelo global de negócios mecânicos, e acabou criando uma parceria com eles. “Quando você tem um nome forte por trás da oficina, acaba abrindo portas e trazendo novos clientes”.
Ele atende todo tipo de carro, desde importados de alta performance até veículos mais populares. “Aqui é sem preconceito, atendemos todo mundo, é bem democrático”, diz. Apesar de ter vários clientes fidelizados, Fabrício também foi bastante afetado pela quarentena. No vídeo a seguir, ele conta um pouco sobre sua experiência.
Movimento
Essa alteração no movimento das oficinas é sentida não só pelos próprios mecânicos entrevistados, mas também pelos seus próprios colegas próximos de trabalho. “Não só a minha oficina, tem outras oficinas que eu entro em contato para saber como anda o movimento. E tem oficina inclusive já fechando as portas, porque não está conseguindo pagar as contas”, Joelma conta, enfatizando o quanto o momento tem sido impactante.
Para ela, não adianta simplesmente estar com o comércio aberto: afinal, o consumidor final não está saindo de casa e não tem comprado do produto. “Eu tive que fazer tudo que ouvimos na TV: renegociar com os fornecedores, conversar com o dono do ponto para flexibilizar o aluguel, meus funcionários também eu tive que reduzir o pagamento para mantê-los. Então tudo o que eu pude cortar de despesa, eu cortei. Para poder conseguir me manter aqui, porque a minha receita caiu drasticamente”, ela declara.
Jéssica também diz que tem reparado alterações na sua própria região: “Muitas vezes, as oficinas aqui estão movimentadas, mas o cliente acaba não autorizando o serviço porque o preço ficou muito alto. Muitos dos nossos amigos estão reclamando que o movimento caiu”.
A variação de movimento
É um consenso entre os quatro entrevistados que o movimento das oficinas diminuiu de forma ampla, e que eles têm tido que se virar nos 30 para contornar a situação. Mas algo interessante pontuado, também, é que mesmo durante o período da quarentena houve uma alteração das movimentações.
Em outras palavras, no começo da quarentena, as pessoas vinham respeitando mais as orientações estaduais e municipais. Conforme abril foi passando, no entanto, as coisas foram se flexibilizando e maio já começou com um movimento um pouco maior (é o que Joelma e Fabrício afirmam).
Ao mesmo tempo em que os mecânicos se sentem um pouco aliviados por ver o comércio voltar, esse é um sinal escorregadio. Ele significa, afinal, que as pessoas têm levado menos a sério as normas sobre o fechamento – o que pode gerar resultados bastante difíceis para a saúde pública.
Mas como eles mesmos podem se prevenir?
Como já dito no início da matéria, muitos dos estados brasileiros só têm permitido que as oficinas funcionem com algumas restrições. O uso de máscaras, a distância entre cliente e mecânico e o agendamento prévio são algumas delas. Mas os 4 mecânicos e proprietários entrevistados têm contado com precauções além dessas.
Joelma Rodrigues, da Divas Car, conta que não deixa que aconteça aglomeração de pessoas em sua oficina. “As pessoas vêm, deixam o carro e vão embora. Fazemos o orçamento via whatsapp, eles aprovam e depois vêm retirar. É muito difícil que alguém fique esperando aqui, só quando é um serviço mais rápido como alinhamento”, conta. Seus mecânicos têm usado máscara, e ela diz que disponibiliza álcool em gel por todos os cantos. Também tem usado papel filme para colocar no volante, no câmbio, e uma capa protetora no banco.
Jéssica Ribeiro, da VTR, tem seguido essa mesma linha. A higienização do carro do cliente é feita com álcool – no volante, na maçaneta, no freio de mão, na chave – e ela também usa o plástico filme como um de seus recursos.
Fábio conta que, na Binho Auto Elétrico, além das máscaras adequadas requeridas pela Anvisa, também há um cuidado especial com o distanciamento entre as pessoas. Ele diz que os próprios clientes já têm se atentado a isso, ficando mais longes, sem acúmulo. E o carro tem ficado pela oficina para ser ajustado sem que o cliente esteja por ali esperando.
Fabrício tem uma versão um pouco diferente dessa. Embora todos os cuidados estejam sendo tomados na Castrol Auto Service, ele ressalta que nem sempre as pessoas têm sido tão atenciosas para o tão importante distanciamento. Muitos clientes ainda acabam se aproximando muito, acostumados à cordialidade habitual da oficina, e é um pouco difícil saber como lidar com isso.
As estratégias
Para lidar com toda essa situação, os 4 têm traçado estratégias para atrair a clientela. Afinal, eles têm se deparado com o fato de que as pessoas não vão se dirigir até eles naturalmente, ficando mais fechadas em casa ou mesmo receosas com o dinheiro gasto. “Antigamente eu tinha uma situação mais confortável: eu sabia que o cliente ele vinha me procurar. Hoje o cliente está um pouco restringido para chegar até mim”, explica Fábio Alves.
Ele conta que a Binho Auto Elétrico está usando uma série de ferramentas para alterar essa situação. Eles têm mandado email ou whatsapp para os seus clientes, fazendo promoções e dando dicas sobre seus carros: “Não esquece de dar partida no seu carro, ou você pode acabar ficando sem bateria; verifica o óleo, a calibração do pneu, o filtro de cabine”, conta. Por volta de 3 dicas são enviadas a cada semana para o cliente, e Fábio tem percebido que tem conseguido capitar alguns. “Muitos chegam e falam: ‘pô, legal, não lembrava disso, vou levar o carro aí e vou verificar’”.
Essa estratégia online parece ser uma tendência entre os mecânicos e proprietários de oficinas. Jéssica fez uma lista de clientes e passou a enviar mensagens por eles via whatsapp. Conta para os clientes que seus carros parados também podem adoecer, chamando-os para fazer uma revisão e dando descontos. Ela conseguiu negociar taxas da máquina do cartão de crédito, e tem oferecido um parcelamento em mais vezes para o cliente. “Serviço sempre tem, mas a maioria dos clientes querem pagar em mais parcelas. Então isso tem me ajudado”, diz.
Joelma, da Divas Car, conta que tem aumentado o atendimento emergencial da oficina. Isso porque sabe que as pessoas vão usar o carro, depois de muito tempo parado, e o carro vai apresentar problemas (principalmente na bateria): assim, oferecer esse tipo de serviço é uma forma de atender mais clientes. Os seus mecânicos se dirigem até o local do carro ou, muitas vezes, até mesmo um guincho leva o veículo até eles.
A Divas Car também tem sido muito procurada por meio do Google. Afinal, como há muitas oficinas fechadas, as pessoas passam a procurar por outras em sua região, e acabam se deparando com o seu nome e os comentários positivos a respeito da sua oficina.
Os casos mais frequentes
Com essas estratégias para chamar os clientes, as oficinas têm conseguido atrair um pouco mais de movimento. O curioso é que não só os clientes antigos têm aparecido: os quatro mecânicos contam que geralmente pessoas novas começam a entrar em contato com a oficina – ou porque veem a mensagem de whatsapp por terceiros, ou porque a oficina em que eram fidelizados teve de fechar.
As principais demandas têm sido pelos serviços reparativos. As pessoas têm se dirigido às oficinas quando percebem algum problema no próprio carro e precisam que aquilo seja consertado. “A maioria dos serviços que estão chegando até aqui são, por exemplo, carros que estão vindo de guinchos, porque o motor travou. O que mais estamos tendo aqui hoje é problema com motor. Eu estou com 6 carros aqui e os 6 tem esse mesmo defeito: correia dentada estourada. Não é preventivo, é mais corretivo mesmo”, explica Jéssica.
Joelma conta que, no seu caso, tem recebido casos de manutenção e emergenciais. “Eu estou com algumas promoções nas minhas mídias e as pessoas até se interessam, mas ficam com receio de fazer e, depois, não conseguirem emprego para recuperar esse dinheiro gasto. Então a maior parte dos casos que chega até aqui tem sido de reparação mesmo”.
Nunca mais será o mesmo
O mundo tem mudado muito durante a pandemia. Não só pelas perdas e tragédias, mas pela própria maneira de funcionar das pessoas. O comércio tem tentado se virar online e alguns, com sorte, têm conseguido.
Joelma Rodrigues diz que acha necessário que todos se precavenham. “Quem não precisa sair na rua, não é para sair mesmo. Esse vírus não é só um resfriadinho. Ao meu redor já tive problemas de pessoas que vieram a falecer, então todo mundo precisa tomar precauções e se proteger”. Ela também afirma que, no entanto, tem ficado preocupada com o cenário ao seu redor. “Me sinto agradecida a Deus por estar conseguindo abrir o meu comércio, mas eu faço parte de vários grupos de mulheres empreendedoras aqui em Guarulhos, e vejo como elas estão desesperadas. É muito preocupante”, diz.
Fábio alerta para o fato de que os mecânicos precisam estar atentos ao gerenciamento das oficinas. “Eu acho que os reparadores têm que focar e se unir. Procurar estar interagindo e se policiar na gestão. Hoje, se o cara não tiver uma boa gestão da sua oficina, ele vai acabar tendo um problema muito sério”, afirma.
Fabrício também falou sobre todas as mudanças que tem enxergado no mundo, e o quanto pensa que, para os mecânicos, é um tempo de se reinventar.
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