As Epidemias e as transformações econômicas
Talvez o leitor já tenha ouvido falar, em aulas de história distantes, que a Peste Negra foi responsável pelo fim da Era Medieval e do sistema feudal. Em um nível menos intenso, talvez já tenha ouvido falar também sobre como a Gripe Espanhola bagunçou o PIB mundial e gerou uma crise momentânea no setor financeiro. As epidemias, afinal, sempre causam mudanças grandes em uma sociedade – seja de forma mais imediata ou de forma mais duradoura.
Com o surto do coronavírus, ainda não se tem como saber qual dessas duas naturezas define o futuro das diversas sociedades pelo mundo. A crise no setor financeiro (causada pela imprevisibilidade nos mercados) vai passar? Depois de quanto tempo? Outras mudanças causadas pelo vírus vão permanecer?
Não há como saber ao certo. Essa, afinal, é uma doença nova que tem se espalhado pelo mundo inteiro e causado mudanças profundas. A denominação oficial para o vírus, dada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é SARS-CoV-2, e a doença em si se chama COVID-19. Seus sintomas mais comuns são tosses e febres, e os mais graves dor no peito ou dificuldade de respirar.
O coronavírus tem infectado milhares de pessoas no mundo inteiro e tem feito governos decretarem quarentena a serem seguidas pela população. Com isso, pessoas têm ficado em casa e mercados têm tido de se reajustar. É notável, por exemplo, o quanto as compras online cresceram e o quanto plataformas na internet têm se saído menos pior do que o comércio físico.
Isso significa que houve uma migração definitiva para os meios online? E, afinal, essa migração já não vinha acontecendo antes? Pois bem: uma das teses defendidas por essa matéria é que as epidemias às vezes funcionam como aceleradoras de alguns processos que já vinham se desenvolvendo antes de elas se iniciarem.
Trouxemos aqui 2 exemplos de epidemias que marcaram a História e mudaram a produção humana: a Gripe Espanhola e a Peste Negra. A primeira transformou as sociedades de uma maneira menos profunda, enquanto a segunda teve um impacto mais agudo.
A Gripe Espanhola
– O que foi?
O mais curioso dessa doença é que ela foi causada pelo vírus Influenza, o mesmo tipo que causa gripes comuns. Esse vírus é conhecido por sofrer mutações constantes – é por isso, inclusive, que as suas vacinas sempre se atualizam –, e a mutação do começo do século XX causou desgraças consideráveis. Estima-se que o número de mortes tenha sido entre 20 e 40 milhões.
O número não é exato porque os registros também não o eram. Mas o fato é que, apesar de seu batismo levar o nome da Espanha, foi na Índia que a doença foi mais devastadora: lá, o número de mortes chegou a 13 milhões. Ela durou cerca de 2 anos, entre 1918 e 1920, infectando 500 milhões de indivíduos, e chegou a matar o presidente vigente no Brasil: Rodrigues Alves.
Sua proliferação era muito rápida porque acontecia pelo ar, por meio de gotículas de saliva e espirros. Era realmente como pegar uma gripe comum de um colega do escritório, com a diferença de que suas consequências eram muito mais graves. Dores fortes de cabeça e no corpo eram só o começo: essa doença também podia causar inchaço grave nos pulmões
O Influenza vírus causou duas grandes epidemias: a Gripe Espanhola e a H1N1 (conhecida como Gripe Suína) mais tarde, em 2009.
– O contexto e as mudanças
Os anos em que essa gripe se espalhou já foram comentados: 1918, 1919 e 1920. Mas é preciso lembrar que, de julho de 1914 a novembro de 1918, acontecia no mundo uma guerra de grandes proporções. A Primeira Guerra Mundial envolvia principalmente países europeus como França, Inglaterra, Itália e Alemanha, mas também contou com a presença dos Estados Unidos.
Essa guerra se desenvolveu principalmente em territórios europeus, causando grande devastação nesse continente. Com a cabeça completamente voltada para as batalhas, os países participantes encararam a Gripe Espanhola de uma forma bastante torta. Para não manchar suas imagens em um momento em que ter o apoio da população era importante, eles acabaram escondendo as letalidades que se multiplicavam.
Como a Espanha teve um papel mais neutro nessa guerra, ela não teve essa mesma postura. Continuou a publicar artigos sobre o tema, sem censurar o jornalismo que divulgasse esse tipo de informação. Por ser amplamente comentada por ali, a doença acabou recebendo o nome de Gripe Espanhola – mas não foi o país mais atingido, e os outros também não estavam imunes.
Com as tantas incertezas que a guerra e a doença traziam, houve um período de bastante instabilidade econômica logo após a pandemia deixar seus estragos. Estima-se que o PIB mundial sofreu uma queda de 6%, e que várias famílias acabaram perdendo sua principal fonte de renda: afinal, se o seu chefe falecesse, enfrentariam problemas muito complicados a seguir.
A Gripe também afetou especialmente pessoas entre seus 15 a 49 anos, considerada a idade ativa de um indivíduo. Isso significa que o mercado de trabalho teve uma produtividade muito reduzida durante um longo período. Com uma quantidade menor de mão de obra, os salários aumentavam, mas isso não representava de fato um maior poder aquisitivo: a inflação também ficava maior, aumentando os preços nos mercados.
O cenário difícil durou por algum tempo, até que os mercados fossem se recuperando. A longo prazo, os efeitos dessa epidemia não foram tão negativos, nem mudaram significativamente todo um sistema econômico. Mesmo em 1921, os Estados Unidos já haviam se recuperado e passavam por uma fase de prosperidade econômica.
Talvez o mesmo não possa ser dito em relação à Peste Negra, que ocorreu séculos antes e acompanhou mudanças mais fundamentais.
A Peste Negra
– O que foi?
Se existiu uma epidemia devastadora, foi a Peste Negra. Ao contrário do coronavírus e da gripe espanhola, ela foi causada por uma bactéria, chamada Yersinia pestis. Versões dessa bactéria já circulavam pela Europa há mais de séculos, mas a mutação mais feroz se multiplicou no século 14, afetando profundamente esse continente entre 1347 e 1353.
Mas ela não surgiu propriamente na Europa, e sim na Ásia. Essa bactéria se alojava em pulgas, as quais rodavam grandes distâncias pela chamada Rota da Seda (um trajeto comercial e majoritariamente marítimo que ligava a Ásia à Europa). Nessa rota, as pulgas tinham contato com a imensidão de ratos dos porões das caravanas, seus hospedeiros principais.
Elas então se armazenavam nos roedores e viajavam até o continente europeu, desembocando em litorais. A Itália foi uma grande atingida e estima-se que tenha sido por esse país que a doença enfim se espalhou para dentro da Europa. Os sintomas eram terríveis: tumores nas axilas e virilhas, manchas negras pelo corpo, vômitos sanguinolentos, febres altas, complicações pulmonares.
O número de mortes é bastante incerto. David Routt é professor de história da Universidade de Richmond, dos Estados Unidos, e publica artigos científicos sobre a Peste Negra e movimentos sociais da idade medieval. Em 2008, publicou “O impacto econômico da Morte Negra”, falando sobre as várias mudanças que tomaram o continente europeu a partir da doença.
Routt começa o artigo falando justamente sobre a dificuldade de medir o seu grau de destruição. Afinal, os próprios registros populacionais de antes da peste já eram incertos (nunca se sabia, por exemplo, quantas pessoas ocupavam uma determinada família). E as testemunhas oculares da epidemia, que deixaram seus relatos escritos, também divergem muito em números, e não se tem certeza se elas não poderiam estar exagerando os dados.
(O historiador diz que, na Idade Média, era comum que houvesse registros mais dramáticos e talvez exagerados sobre os fatos históricos ocorridos.)
A estimativa publicada nesse artigo é que os mortos tenham estado entre os 17 e os 28 milhões. Mas muitos historiadores levam esse número muito mais acima, estimando 75 a 200 milhões – mais da metade da população europeia.
O que se sabe é que a doença atingia mais os homens do que as mulheres, mais os citadinos do que os camponeses, mais os pobres do que os abastados, mais as crianças do que os adultos – esse último fato era tão preponderante que a doença chegou a ser apelidada de “Praga das Crianças”.
– Foi tudo culpa da Peste?
O século 14 passou por imensas transformações socioeconômicas. O próprio sistema vigente foi se alterando, a ponto de esses anos serem considerados a linha divisória entre o que se chama de Idade Média (século 5 a 15) e o que se chama de Idade Moderna (século 15 a 18) na História Ocidental.
Antes da praga, o sistema econômico era feudal, muito-predominantemente agrário, em que camponeses, nobres e senhores dividiam grandes propriedades fechadas, ocupando posições muito distintas.
Os camponeses eram a grande maioria da população, e seu papel era cultivar terras que pertenciam ao senhor daquela propriedade. Eles tinham que pagar taxas altas e fornecer serviços para terem a proteção desse dono. Afinal, o lado de fora dos muros era tomado por invasões e violências intensas.
Os nobres tinham condições muito mais privilegiadas, recebendo os frutos do plantio dos camponeses e eximindo-se de pagar taxas altas. O setor agrário era essencial para todo o funcionamento desse sistema, e o cultivo predominante, antes da peste, era de grãos.
Após a Peste Negra, as mudanças foram significativas: não só os cultivos mudaram, como os camponeses passaram a ter a posse de várias das terras, os senhores perderam seu domínio. A relação do setor agrário com a burguesia também aumentou consideravelmente. Por fim, as cidades e o comércio se tornaram parte essencial do cenário econômico.
Muitos atribuem todas essas mudanças ao grau de devastação da epidemia, e ao fato de que a população diminuiu muito com ela. Mas David Routt diz que esse fator (a doença) é apenas parte do todo. Para o historiador, outros elementos também precisam ser considerados.
Em primeiro lugar, durante o século 14, houve uma mudança significativa no clima: uma frente fria que permaneceu por vários anos. Isso prejudicou a produtividade agrícola e todo o sistema feudal (principalmente no norte da Europa). Em segundo lugar, havia questões políticas envolvidas na crise feudal: instituições vinham enriquecendo a nobreza e prejudicando camponeses e burgueses, que depois acabaram dando o troco.
Por último, antes mesmo de a praga chegar, havia acontecido um crescimento populacional muito grande, que pressionou a capacidade de se alimentar das sociedades medievais. Com muita gente, havia menos alimentos disponíveis e menos terras disponíveis, o que aumentava o empobrecimento e a própria infertilidade das terras (pois havia menos adubo e mais terras sendo pressionadas e usadas até a exaustão dos solos).
Cada um desses fatores também foi importante para que o cenário socioeconômico se transformasse. Portanto, a séria e grave epidemia foi importante para as mudanças, mas serviu como uma aceleradora desses processos (e não a única causadora deles).
– De que forma a Peste Negra alterou a economia?
Nos anos mais intensos da epidemia, entre 1347 a 1353, uma grande quantidade de camponeses morreu (por mais que a peste tenha afetado mais as cidades do que o campo). A consequência disso é que a mão de obra da agricultura diminuiu consideravelmente.
Os senhores feudais tentaram manter os mesmos costumes por um tempo – continuando com as mesmas estruturas administrativas, os mesmos campos sendo arados, a mesma forma de cultivo, colheita e as mesmas taxas cobradas aos camponeses. E, por um pequeno período de tempo, esse mecanismo funcionou.
Mas havia essa mudança muito drástica de quantidade de pessoas servindo ao senhor. Antes, com a quantidade abundante de camponeses (causada pelo aumento da população citado), esse senhor podia manter salários mais baixos e alugueis mais altos pelas terras. Afinal, se algum camponês não se submetesse a essas condições, outros poderiam fazê-lo.
Depois da peste, com a diminuição intensa da mão de obra, os camponeses passaram a estar em uma posição de vantagem. Passaram a exigir salários maiores e, caso o senhor não o aceitasse, sairiam procurando outras terras vazias. O senhor não podia deixar suas terras improdutivas assim, já que o sistema vigente dependia da agricultura, e por isso teve que aumentar os pagamentos.
Isso significa um aumento na mobilidade rural dos camponeses, e uma receita menor aos proprietários de terra. Essa receita menor obrigou toda a aristocracia (os nobres) a reduzir seu próprio custo de vida, mudando seu estilo de vida. Aos poucos, como forma de lidar com essa crise, os senhores feudais também passaram a fazer arrendamentos com mais frequência.
Chegou a um ponto em que enormes porções de propriedade eram alugadas a camponeses, que tinham que faziam o que quisessem com as terras, desde que pagassem taxas fixas. Em várias situações, os senhores chegavam até mesmo a fazer a transformação de posse a esses camponeses, com o pagamento.
Tudo isso foi representando um colapso do sistema feudal. Ele também não produzia mais grãos e sim cultivava gado, fabricava lã, plantava uva, vegetais, maçãs, tecidos, corante. Todas essas culturas eram mais voltadas ao próprio comércio feito nas cidades. A ligação entre a burguesia das cidades e o que se produzia nessas propriedades menores de camponeses cresceu.
“A agricultura rural tornou-se mais sintonizada com a demanda urbana, e os empresários e investidores urbanos se envolveram mais intimamente com o que era cultivado no campo”, escreve David Routt [traduzido para o português].
A transformação de uma era já estava em curso, e uma de suas causadoras foi ela: a Peste Negra.
Por: Ligia de Castro
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